Crise da covid-19 abre caminho para ônibus elétrico
Em maio de 1900, São Paulo inaugurou sua primeira linha de bonde elétrico. Passados 120 anos, os bondes desapareceram de suas ruas, os trólebus viveram auge e declínio, o metrô demorou a aparecer e pouco se expandiu, e os ônibus a diesel e a poluição dominaram a paisagem. Agora, a maior metrópole sul-americana, assim como outras cidades brasileiras, precisa voltar para a eletricidade como principal matriz energética para cumprir o acordo de Paris sobre mudanças climáticas.
Por um lado, a freada brusca de 2020 devido à pandemia do coronavírus deu uma amostra que é possível reduzir a poluição. Por outro, especialistas apontam que agora, com a necessidade dos governos pelo mundo de injetar dinheiro para movimentar a economia, seria o momento certo para acelerar a expansão da chamada eletromobilidade.
“É óbvio que a melhor saída é a eletrificação. Isso globalmente. Além de ser solução mais limpa e barata para o transporte, essa energia vai reduzir os gastos com o já sobrecarregado sistema de saúde, afinal, a poluição reduz pelo menos três anos de vida das pessoas nas grandes cidades”, apontou Carlos Nobre, especialista em aquecimento global e presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. “Precisamos de mais transporte público e mais transporte elétrico. E que as pessoas também usem carros, bicicletas, patinetes elétricos apenas para percorrer pequenos trechos. Seria algo complementar: uma rede capilar que alimentasse o tronco principal para o transporte de massa. Tudo por eletricidade”, complementou André Luis Ferreira, diretor executivo do Instituto de Energia e Meio Ambiente.
Mas o Brasil já parte atrasado para esse destino: tem apenas 28 ônibus a bateria em circulação atualmente. O Chile já conta com mais de mil deles, comprados da China, o país que é a ponta de lança dessa tecnologia. Os chilenos aplicaram a receita dada pelo Banco Mundial e o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento): as prefeituras compram os veículos elétricos, com financiamento desses organismos multilaterais, e repassam para as empresas se encarreguarem da operação. O Plano Nacional de Eletromobilidade teria como principal palco de exibição a COP (Conferência de Mudança Climática) em 2019 em Santiago, mas a onda de protestos no país fez o evento migrar para a Espanha e a ação de marketing ficou frustrada.
O México e a Colômbia, que também estão à frente do Brasil na utilização após a aquisição de veículos chineses, seguiram a mesma estratégia. “As indústrias brasileiras de ônibus ganhavam todas as licitações da América Latina, mas nós ficamos para trás na tecnologia elétrica e estamos perdendo espaço para os chineses”, afirma Iêda de Oliveira, diretora da ABVE (Associação Brasileira de Veículos Elétricos) e da Eletra, a principal fabricante brasileira de ônibus elétricos e trólebus.
A China conseguiu eletrificar totalmente a frota de suas grandes cidades até 2020 (500 mil veículos), aproveitando para reduzir em até 30% a poluição urbana, além de desenvolver a tecnologia e ganhar escala para conquistar mercados pelo planeta. Em 2010, o governo chinês determinou que o transporte elétrico seria um dos 12 setores promissores que o país iria investir para alavancar sua economia. Fizeram uma lei para eletrificar todas as cidades com mais de 100 mil habitantes e cumpriram.
“Foi um pensamento estratégico do governo chinês. Afinal, a eletromobilidade é uma indústria do futuro, diminui a poluição e cria segurança energética, diminuindo a dependência de fontes que são importadas por eles”, analisa Adalberto Maluf, que é presidente da ABVE e diretor de marketing e sustentabilidade da BYD, fábrica chinesa que é a maior produtora mundial de ônibus elétricos.
Os dois acreditam que deveria haver incentivos oficiais para o setor deslanchar. “O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] deveria ter uma linha de financiamento para acelerar a área. Ainda mais agora que precisamos de uma retomada na economia. O ônibus elétrico não é só uma questão ambiental: é uma questão de sobrevivência para toda uma indústria no país, o Brasil é o maior fabricante de ônibus da América Latina”, analisa Oliveira.
Para Maluf, é difícil falar em investimentos e incentivos fiscais em um momento em que as empresas de transporte urbano estão entrando em prejuízos pela quarentena (caiu 30% da oferta de ônibus e 70% do movimento de passageiros). Mas ele acredita que o caminho está na política local e nas legislações municipais. “O governo federal não tem mostrado interesse ambiental, mas são os prefeitos que estão liderando a agenda climática e fazendo as mudanças. Isso tem acontecido no Brasil, mas também nos EUA”, opina Maluf, que cita o exemplo de Los Angeles, que já tem toda a frota a gás desde o século passado e quer eletrificar tudo até 2030.
Para Paulo Henrique de Mello Sant’Ana, professor do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC, é o financiamento público que pode tirar essa tecnologia do papel e dos “projetos-piloto”. “Não tem jeito. O custo inicial agora é muito pesado porque os ônibus elétricos custam mais do que o dobro que os a combustão. Mas o custo de operação é bem mais barato para esse investimento”, afirma Sant’Ana, que fez pesquisa na Universidade de Berkeley (EUA), sobre os modelos de implementação.
O que mais encarece essa tecnologia é a bateria, mas seu preço cai 10% ano a ano devido à escala que a produção vai tomando globalmente. O cálculo de Sant’Ana é que, até 2030, o ônibus elétrico custe o mesmo que um convencional.
Cidades começam a se mexer
Campinas, por exemplo, criou um corredor de ônibus elétricos, e cidades como São José dos Campos e Salvador vão pelo mesmo caminho. Por sua vez, a prefeitura de São Paulo, com Gilberto Kassab à época, estipulou em 2009 que em dez anos 50% da frota da cidade seria movida sem a utilização de combustível fóssil. Nada andou, e em 2018, o então mandatário paulistano, João Doria, renovou as promessas após a Câmara Municipal criar e aprovar nova lei: em 2028, 50%, e em 2038, 100%, sem estipular quais fontes de energia seriam usadas nem a estratégia financeira para chegar até lá.
Segundo Rafael Calabria, coordenador do programa de mobilidade do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), as discussões estão emperradas. “O cronograma para renovação da frota está em análise desde setembro de 2019. Cobramos providências em janeiro, a resposta só veio em março – às vésperas da quarentena. Se a prefeitura já estava se esquivando antes, imagina agora com a pandemia”, critica Calabria.
Ele lembra que o auxílio de R$ 60 bilhões do governo federal a Estados e municípios, que está sendo discutido no Congresso para combater a crise atual, não detalha em que áreas serão gastos esses recursos e que, a princípio, prefeitos e governadores é que escolherão onde destinar essa verba.
Tudo é passageiro
O bonde elétrico teve tamanha expansão em São Paulo que nos anos 1940 a cidade chegou a contar com 225 quilômetros de extensão (bem maior que os atuais 101 quilômetros do metrô paulistano) – o Rio de Janeiro, que ainda conta com o turístico bondinho de Santa Teresa, tinha naqueles idos quase 500 quilômetros de trilhos.
Em 1968, o bonde paulistano fez sua última viagem. Nessa época, era o trólebus (ônibus com alavancas conectadas a fios) estava em expansão e chegou a ter 343 quilômetros de extensão nas décadas de 1980 e 1990. Hoje em dia, estão por volta de 200 quilômetros, com trechos de fiação sendo arrancados no início do século 20 das avenidas da zona oeste, sul e norte da cidade. “Há muito preconceito com o trólebus. Na época da retirada se argumentou que era estética. Mas o fio que você vê é um sistema muito mais limpo que os poluentes que você não vê e te matam”, argumenta Oliveira.
O transporte da cidade viveu ao sabor das crises energéticas. As linhas de ônibus a combustão ganharam importância quando uma seca entre os anos 1923 e 1924 comprometeu o fornecimento de energia elétrica em São Paulo. Em 1927, a empresa canadense Light apresentou um projeto de construção de metrô, mas a ideia acabou arquivada.
Já o metrô de São Paulo só virou realidade na década de 1970, quando o mundo vivia o período das grandes crises do petróleo. Mas o transporte subterrâneo paulistano cresceu muito devagar e até hoje é pouco extenso comparado com outras metrópoles do mesmo porte, como Nova York, Buenos Aires e Cidade do México.
“A eletromobilidade também tira pressão sobre as tarifas. Você tem a opção de recarregar com energia solar, o que barateia mais ainda”, aponta Maluf. Ele diz que sua empresa apresenta aos clientes a opção de alugar a bateria de lítio e o direito de recarga para facilitar a aquisição e aliviar os custos. Segundo Maluf, isso faz os custos do ônibus elétrico se aproximarem do modelo convencional.
Nessa conta, tem que entrar também a economia em saúde da população. Segundo cálculo do Instituto Saúde e Sustentabilidade, o país perde R$ 54 bilhões entre mortes, internações, custos hospitalares e perda na produtividade devido à poluição. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), este motivo também é a causa de sete milhões de óbitos no mundo anualmente, sendo 50 mil no Brasil (10 mil na Grande São Paulo).
A BYD tem uma fábrica de veículos em Campinas e uma montadora de baterias em Manaus, com 70% dos componentes vindos da China. Já a Eletra possui fábrica no ABC Paulista e uma parceria com a empresa Moura para produzir baterias para seus ônibus elétricos.
“O futuro é ter uma diversidade de fontes de energia para evitar dependências e oscilações. Pode ser ônibus a bateria, trólebus, a gás, biocombustível. E mesmo gasolina ou diesel, para as grandes distâncias. Há ainda os híbridos. Cada tipo tem uma indicação e utilidade. O que não pode é a indústria nacional ficar para trás por falta de financiamento e visão por parte do governo”, criticou Oliveira.
Por: Rodrigo Bertolotto | De: Ecoa UOL | Foto: Caio Induscar